terça-feira, 10 de maio de 2011

À minha prima, Tânia Jamardo Faillace


Tânia Jamardo Faillace nasceu em 1939, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Jornalista e escritora, entre suas obras registradas na Biblioteca Nacional está o livro Beco da Velha, que é composto de 19 volumes (7.748 páginas), escrito durante 10 anos, sendo, sem dúvida, um sério candidato ao mais extenso livro do mundo. A obra continua inédita. Publicou, além de Fuga e Adão e Eva, os livros de contos O 35º Ano de Inês, Vinde a mim os Pequeninos e Tradição, Família e Outras Estórias e o romance autobiográfico Mário/Vera. Também participou de mais de 20 antologias no Brasil e no exterior.





Fragmento do romance “Beco da Velha”




Parte II – Maria Geneci – aprendizados)


Na Luz Mortiça da Estação


Maria Geneci não foi muito longe naquela primeira viagem. Desceu numa estação rodoviária acanhada, simples ponto de venda de passagens, e perguntou: “donde é que fica esta rua?”

Quantas vezes tornaria a fazer essa pergunta, ora sorrindo, ora impaciente, ora raiva luzindo nos olhos, ora cansaço amortecendo a voz... Naquela noite, começava pura interrogação. Com um pouco de inquietude, talvez, porque nunca dormira fora de casa, e não tinha assimilado o fato de ter ido embora. Tinha ido, mas ainda não sabia o tamanho disso, como uma coisa inteira, completa, para toda a vida.

Assim, teria quase podido explicar: “Sô a fi’a do Venâncio Barros, e vim m’impregá pra num pesá mais em casa, e num percisá me casá”. E domingo, faria o caminho de volta, e levaria presentes da cidade para os irmãos, e visitaria a dona das cabras, como quem saiu e cresceu – e passearia com Alfredo à beira do Jacuí, tão virgem como antes.

Na luz mortiça da estação, Maria alisou mais uma vez o papelzinho para deixar clara a anotação de Alfredo. Os ondulados faziam sombras, talvez por isso, o bilheteiro encolhesse os ombros e nada dissesse. Maria voltou-se para o interior da sala de espera, onde o piso marrom de cimento alisado absorvia os amarelos das duas lâmpadas. E repetiu, para um banco comprido, para alguns pacotes e sacolas trançadas: “donde é que fica esta rua? Esta aqui, ó...” e leu.

Alguém lhe respondeu. Arrastou os pés com chinelos e veio de lá. Fez mais: acompanhou-a até a esquina e apontou-lhe o caminho. Um velho magro, alto, abraçado num embrulho feito em papel jornal, unhas espessas, encardidas de terra.

Maria fez que sim, e foi-se a seu destino.


A Cidade


O primeiro emprego de Maria como doméstica. Sem saber o trivial, sem lavar as mãos antes de servir, batendo as portas, gritando com visitas e fornecedores desde o sobrado, rindo alto e ficando na sala, quando se agradava de uma conversa.

Sua dificuldade em “saber o seu lugar”, em compreender isso, em decorar os horários e o regimento daquela casa, que não era sua, que não devia jamais encarar como sua. Aprender a deitar e a dormir numa cama que lhe cediam, não lhe davam. Descobrir aos poucos, em etapas, o sentido do que disse Alfredo no último dia... “semo pobre”, e o que estava junto.

Maria Geneci conhecendo a palavra “cidade”. Ninguém se pergunta se há um rio mais adiante, se os porcos são melhores que as cabras, se as galinhas já começaram a pôr... Em compensação, as pessoas, as roupas, e, principalmente, os preços das coisas, são muito importantes.

O aturdimento de Maria Geneci durou pouco. Logo percebeu que havia ali um outro mundo real, que era preciso entender para não cair fora. Diferente de antes, diferente de “lá fora”, a cidade não admite ser ignorada: expulsa quem não a conhece, quem não entra em seu jogo.

O dinheiro, por exemplo. Quem pensaria que Maria Geneci se tornaria tão hábil em matéria de preços, compras, trocos, salários, descontos, assim rapidamente? Que o dinheiro pesaria em sua mão como um penhor, um resgate?

É isto o que me mantém viva, diria ela, se tivesse o hábito das frases feitas, ao receber seu salário. De certo modo, concentravam-se ali todos os velhos significados: do primeiro ao último minuto do dia. Cada ação sua era avaliada em centavos, em cruzeiros, era somada ou subtraída a seu valor, conforme servisse à patroa ou a si mesma.

Alisava nota por nota sobre o joelho, calculando o que continham: as lavagens de roupas, de louças, de panelas, os atendimentos de porta, as faxinas, os almoços e as outras refeições, e também uma parte do vestido que pretendia comprar no mês seguinte, quando completasse seu preço. Ou o vestido se permutava com as lavagens e os almoços? Havia qualquer coisa ali, que lhe escapava. Contava e recontava seu salário no rastro de uma idéia obstinada e esquiva.

Quando desistia, deitava-se em sua cama de armar (semelhante à de seus irmãos pequenos), e sonhava um sonho nebuloso, onde entravam bandidos, montes de dinheiro, um rio imenso, parecido a um braço de mar – e já se erguiam montanhas pedregosas, e cascos ágeis trotavam encosta acima, para um cume aberto, ventoso e azul.

Era quando o peito de alguém – dela mesma? – dilatava-se na ânsia de tomar mais ar, de engolir o céu, as cabras, o tesouro dos bandidos, os próprios bandidos... tão grande, tão amplo, que cabiam toda a terra e todo o mar dentro. Porém esse peito era generoso e não os destruía: sugava-os para enriquecê-los, para devolvê-los mais bonitos, mais brilhantes, mais novos.

Na volta, na descida, era uma onda mansa e terna que lavava a praia, redemoinhava nos buracos cavados pelos tatuís.

Maria Geneci distinguia agora o que era fingimento e o que era de verdade. Só que havia fingimentos – quer dizer, coisas que não existiam de ver e apalpar – muito reais.


FONTE: http://www.becodavelha.com/beco%2004%20-%2024%20-%20port.htm

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